Com o advento da Lei 13.467/2017, mais conhecida como Lei da Reforma Trabalhista, foram introduzidos na Consolidação das Leis do Trabalho os artigos 223-A a 223-G, que versam sobre o dano extrapatrimonial. E o seu conceito está descrito no artigo 223-B: “Causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação”.
Note-se que, na seara do dano extrapatrimonial, foi introduzida uma nova categoria além do já consagrado dano moral: o dano existencial. Naturalmente, surgem dúvidas acerca da natureza e da pertinência dessa inovação jurídica, afinal que tipo de dano extrapatrimonial não seria passível de inclusão no dano moral? Ou o que separa a esfera existencial da esfera moral para fins indenizatórios? E quais os meios de provas aptos a comprovar o dano existencial?
Oriundo do direito civil italiano e relativamente recente, o dano existencial se apresenta como aprimoramento da teoria da responsabilidade civil, uma forma de proteção à pessoa que transcende os limites classicamente colocados para a noção de dano moral. A inspiração se origina na percepção da existência de uma lacuna legal na proteção da pessoa contra danos que limitavam ou impediam definitivamente a prática das atividades humanas cotidianas, de modo que essa nova modalidade foi cunhada para ressarcir o “dano à vida de relações”.
A professora Flaviana Rampazzo Soares define o dano existencial, em seu aspecto objetivo, como a lesão ao complexo de relações que auxiliam no desenvolvimento normal da personalidade do sujeito, abrangendo tanto a ordem pessoal quanto a ordem social. Seria, portanto, uma afetação negativa de atividade ou conjunto de atividades que a vítima realizava em seu cotidiano e que, em razão do efeito lesivo, precisou modificar ou mesmo suprimir de sua rotina [1].
Na seara trabalhista esse tipo de dano pode ser compreendido como aquele representativo das violações de direitos e limites inerentes ao contrato de trabalho que implicam, além de danos materiais ou porventura danos morais ao trabalhador, igualmente, danos ao seu projeto de vida ou à chamada “vida de relações”. Trata-se de uma frustração do “projeto de vida” ou “da vida de relação do trabalhador”, impedindo a sua efetiva integração à sociedade e o seu pleno desenvolvimento enquanto ser humano, em decorrência de ato ilícito do empregador. Leia-se: um dos motivos que podem contribuir para o surgimento e configuração deste dano extrapatrimonial, dentre outros, é a jornada de trabalho excessiva, apta a ensejar um esgotamento físico e mental do trabalhador, com impactos na sua vida privada. Isso porque as rotinas de trabalho intensas e desprovidas de pausas implicam desrespeito às relações sociais e familiares do trabalhador, em prejuízo da “vida de relações” e dos projetos de futuro do profissional envolvido em relação de trabalho abusiva.
Nesse sentido, a Constituição já dispõe, em seu artigo 7, inciso XIII, que a jornada de trabalho não poderá ultrapassar oito horas diárias e quarenta e quatro semanais. Já a CLT também limita a jornada de trabalho em oito horas diárias, faculdade, segundo o artigo 59, o acréscimo de horas extras, desde que não ultrapasse o limite de duas horas diárias.
Fica claro, portanto, que uma das configurações mais comum do dano existencial é a extensão desmesurada do horário de trabalho para além do legalmente permitido, ilícito trabalhista que pode causar danos às relações sociais e projetos de vida do trabalhador, que, como ser humano, não se limita às exigências da relação de trabalho. O Tribunal Superior do Trabalho também foi provocado a se manifestar sobre esta temática. No caso julgado, o trabalhador relatou que esteve submetido a longas jornadas, em todos os dias semana, com a exceção de dois domingos por mês, e em seu voto [2], o ministro relator Maurício Godinho Delgado ponderou o seguinte:
“Sucede que o excesso de jornada extraordinária, para muito além das duas horas previstas na Constituição e na CLT, cumprido de forma habitual e por longo período — atingindo, como no caso dos autos, uma exposição ao ambiente de trabalho de mais de 12 horas ao dia, durante todos os dias da semana, exceto dois domingos por mês (portanto, até 84 horas semanais em duas das semanas e 72 horas semanais nas duas semanas restantes) —, tudo isso tipifica, sim, o dano existencial, por configurar manifesto comprometimento do tempo útil de disponibilidade que todo indivíduo livre, inclusive o empregado, ostenta para usufruir de suas atividades pessoais, familiares e sociais”.
Portanto, é imprescindível um olhar cauteloso para esse assunto de extrema relevância, principalmente porque nos últimos tempos tem-se constatado um aumento expressivo da jornada de trabalho, sobretudo por conta das atuais inovações tecnológicas pós pandemia.
[1] SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 44.
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